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Trajetória de mulheres negras para a implementação da Lei nº. 10.639/03

Trajetória de mulheres negras para a implementação da Lei nº. 10.639/03

TRAJETÓRIA DE MULHERES NEGRAS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI Nº. 10.639/03
POR JANAINA DE JESUS LOPES SANTANA

Artigo apresentado ao Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Estudos LatinoAmericanos da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, como requisito para a obtenção do título de Especialista em Gênero e diversidade na educação. Orientadora: Professora. Doutora. Angela Maria de Souza

Resumo
Este artigo é fruto dos debates realizados no curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Educação (2019) ofertado pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana e Caribenha (UNILA) e tem como objetivo abordar a implementação da Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003) numa ótica interseccional, ressaltando as práticas das educadoras negras como forma de resistência para a manutenção e aplicação de políticas de ações afirmativas voltadas para a educação. Sancionada em 2003, a Lei nº 10.639 foi estruturada pelo Movimento Negro e é resultante das ações de mulheres que atuaram não somente na criação e aprovação do projeto, mas também para a ressignificação da corporalidade na luta, pois como educadoras fazem do seu corpo presente em sala de aula ou espaços educacionais um canal de repensar práticas racistas e sexistas. Tendo essa participação como premissa, a presente pesquisa
utiliza entrevistas realizadas com duas educadoras negras pertencentes ao Movimento Negro Unificado e à Rede de Mulheres Negras para destacar a importância da resistência para a implementação das Ações Afirmativas em todos os âmbitos, mas principalmente os voltados à educação.

Palavras-chave: Lei nº 10.639/03. Mulheres negras. Movimento Negro.
 
INTRODUÇÃO

Está pesquisa tem como objetivo percorrer algumas reflexões sobre o debate de gênero e as políticas de ações afirmativas nacionais, baseando-se em revisão bibliográfica e em entrevistas com mulheres participantes de dois movimentos sociais negros do Paraná, o Rede de Mulheres Negras e o Movimento Negro Unificado/PR.
Desenvolvidas em 2018, as entrevistas tiveram como fim o aprofundamento do tema, por meio das trajetórias e narrativas dessas mulheres, escurecendo experiências históricas que encruzilham e ampliam as políticas de ações afirmativas.
Desse modo, utilizou-se como metodologia o trabalho de campo, no sentido de possibilitar e vivenciar alguns eventos que os dois movimentos organizaram.
Ressaltamos que na época em que essas entrevistas foram feitas, a pesquisadora, Janaina Santana, era filiada à Rede de Mulheres Negras, e atuou em alguns dos eventos que serão abordados, como a Marcha da Mulheres Negras de 2015, tendo a honra de colaborar para a mobilização e também de estar presente como corpo político, reivindicando como tantas outras educadoras negras ali presentes.
As entrevistas foram coletadas de forma online devido à distância entre a pesquisadora e as entrevistadas, pois ambos movimentos têm suas sedes em Curitiba. Enquanto a pesquisa documental teve como fontes os registros institucionais dos eventos; entrevistas e documentos pessoais do trabalho de campo, com as experiências pessoais das mulheres negras da Rede de Mulheres Negras e do
Movimento Negro Unificado/PR.


Nas entrevistas, encontramos narrativas que questionam o modelo de
sociedade racista, sexista e classista, em que essas mulheres rediscutem as
estruturas impostas que as subjugam enquanto mulheres negras e intelectuais,
ressaltando as ausências e presenças de determinados corpos e saberes nas
construções epistemológicas nos espaços de poder. Se levarmos em consideração
os lugares não destinados às mulheres negras e toda a estigmatização, é possível
encontrar desafios presentes de forma contínua nos ambientes educacionais, onde
as mulheres negras são desafiadas a todo o momento, tendo que “provar” que são
capazes intelectualmente.
Para a historiadora Lélia Gonzalez (1982) as mulheres negras enfrentam pelo
menos duas formas de opressão: por um lado, suas vivências são marcadas pela
superação do sexismo, e, por outro lado, também pela superação do racismo.
Ressalta-se que essas duas opressões perpetuam noções estereotipadas como a
ideia de “mulata”, “doméstica” ou “mãe preta”, que acabam por enquadrar a visão
sobre a mulher negra e evidenciam a necessidade e a importância de se compreender
as categorias de classe, raça e gênero como indissociáveis no combate às
desigualdades.
Desta forma, ser mulher e negra nos espaços educativos desafia toda uma
estrutura constituída que as estigmatizam. Sendo assim, é de suma importância
transcorrer o processo de luta dessas mulheres para a criação e implementação da
Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003), sob ótica da militância nos movimentos negros no
Estado do Paraná.
Para tanto, as análises aqui estruturadas debruçam-se na relevância da
implementação de leis de ações afirmativas, como por exemplo as Leis nº 10.639/03,
nº 11.645/08 (BRASIL, 2008) e nº 12.71/12, a Lei de Cotas (BRASIL, 2012); a
implementação da SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial), entre outras no âmbito educacional, entendendo-as como possibilidade de
repensar concepções cristalizadas, atuando para a desnaturalização de práticas
racistas, sexistas e classistas.

AQUILOMBAR AS AÇÕES AFIRMATIVAS

Neste artigo, faz-se imprescindível abordar algumas considerações sobre o
Movimento Negro Nacional e como esse foi/é compreendido por pensadores(as) do
debate das relações étnico-raciais na educação.
Para o professor Petrônio Domingues, o Movimento Negro pode ser
analisado como:
[...] a luta dos negros na perspectiva de resolver seus problemas na
sociedade abrangente, em particular os provenientes dos preconceitos e das
discriminações raciais, que os marginalizam no mercado de trabalho, no
sistema educacional, político, social e cultural. Para o movimento negro, a
“raça”, e, por conseguinte, a identidade étnico-racial, é utilizada não só como
elemento de mobilização, mas também de mediação das reivindicações
políticas. Em outras palavras, para o movimento negro, a “raça” é o fator
determinante de organização dos negros em torno de um projeto comum de
ação (DOMINGUES, p. 102, 2007, apud GOMES, p. 7, 2012)
Para Domingues, todo e qualquer coletivo de entidades e organizações que
têm como ponto de partida repensar as problemáticas da população negra em
decorrência do processo histórico escravizador e colonial nacional tem como base a
ressignificação da raça e de como foram construídas as relações étnico-raciais no
Brasil. Esses fazem parte da mobilização que constituem o Movimento Negro. Aqui,
pode-se perceber a amplitude dessa luta, englobando práticas culturais, politicas
partidárias, entidades religiosas e ações educacionais.
Outra definição necessária para essa pesquisa é da socióloga Nilma Lino
Gomes (2012), que também associa o Movimento Negro com a projeção de outras
perspectivas e com a elaboração de políticas públicas que desenvolvam uma pauta
única de reivindicação com agendas democráticas federativas antigenocidas,
possibilitando o escurecimento de memorias históricas, invertendo a lógica que foi
passada nos ambientes institucionalizados como, por exemplo, o espaço educacional.
Dessa forma, questiona-se a falácia de passividade da população negra vinda do
Continente Africano, que pelo processo de construção de um Estado Nação foi
apresentada como cordial e pacífica a todo o processo de sequestro e exploração
colonial portuguesa.
Outra delimitação importante é pensar a categoria raça na construção do
Estado-nação brasileiro, em que para a educadora Nilma Gomes:
O movimento negro indaga a própria história do Brasil e da população negra
em nosso País, constrói novos enunciados e instrumentos teóricos,
ideológicos, políticos e analíticos para explicar como o racismo brasileiro
opera não somente na estrutura do Estado, mas também na vida cotidiana
das suas próprias vítimas. Além disso, dá outra visibilidade à questão
étnicoracial,interpretando-a como trunfo e não como empecilho para a
construção de uma sociedade mais democrática, onde todos,
reconhecidos na sua diferença, sejam tratados igualmente e como
sujeitos de direitos. (GOMES,2012, p. 731).
Ao trazer a abordagem sobre a raça, para entender a construção nacional,
permite-nos inverter o debate relacionado à construção étnico-racial no Brasil,
explanando uma inter-relação entre o que é público e o que é privado, elucidando que
a raça permeia essas duas esferas em ambas intensidades. As práticas cotidianas
são frutos de uma construção histórico-cultural que precisa ser pensada enquanto
direitos construídos, considerando as maneiras que foram hierarquizadas as
diferenças étnicas pela colonialidade mercantilista de espoliação das Américas,
acarretando uma desigualdade racial.
Essa desigualdade racial ocasionou o que entendemos como racismo,
estando presente em toda a estrutura social e na construção do Estado-Nação
brasileiro, como colocado pelo advogado Silvio Almeida (2019). Esse é alimentado
não somente pela falta de conhecimento ou práticas estereotipadas, mas é utilizado
para legitimar ações políticas, econômicas, sociais e educacionais, absorvendo as
especificidades de cada estrutura dominante, sofrendo transformações de acordo
com a demanda do sistema vigente.
Desta maneira, podemos analisar os espaços educacionais diretamente
interligados com a perpetuação do racismo na estrutura social, pois é na sala de aula
que acontece o processo de socialização e de construções de conhecimento
legitimado para a cristalização da ideia de povo brasileiro. Portanto, quando o
Movimento Negro tensiona a implementação de ações afirmativas ligadas à
educação, ressalta a importância de debater, desde a base educacional, os efeitos
do racismo na sociedade e como esse deve ser encarado como uma problemática de
toda a sociedade.
Assim, quando o Movimento Negro propõe ações práticas que tencionam as
relações étnico-raciais, escurecendo memórias e questionando o passado
embranquecido da população negra, esse objetiva a implementação de políticas
públicas, as chamadas ações afirmativas.
As ações afirmativas que são direcionadas ao espaço escolar, como, por
exemplo, as Leis nº 10.639/03, nº 11.645/08 e a Lei nº 12.711 de 2012 (Lei de Cotas),
proporcionam o reacender de outras perspectivas da população negra, repensando e
deslegitimando o ideário de que a parcela da população Africana trazida para o Brasil
deixou se escravizar, que não houve contestação ou resistência. O Movimento Negro
reescreve a história por meio de suas ações e reivindica a inserção desse repensar
para a sociedade em geral, por meio das políticas públicas de ações afirmativas.
Nesse processo, elucidam vivências do passado, presente e a reconstrução
do futuro, reafirmando as formas de luta dos Africanos, entendendo a persistência de
traços culturais ancestrais como contestação ao sistema vigente, desenvolvendo o
ideário de continuação de “Povo”. Entretanto, não está sendo negada a diversidade
étnica trazida pelos comerciantes nos navios negreiros, mas como esses povos se
agruparam para a elaboração de estratégias de sobrevivência e não rendimento,
formando movimentos influenciados pelos modos de organização já existentes em
África, como os quilombos.
Outro ponto significativo para essa pesquisa é o papel das Mulheres negras
no combate à escravização, que faziam do seu corpo uma ferramenta política, como
por exemplo as Quitandeiras ou negras de tabuleiro, que transladaram a forma de se
fazer comércio Africano, com seus tabuleiros, escondendo dos senhores o dinheiro
das vendas para a compra das alforria. Também é preciso citar as mulheres
escravizadas que tinham acesso à casa grande, que podiam pegar as comidas e levar
para os quilombos, ou essas mesmas mulheres que aprendiam a língua das senhoras
e delatavam aos quilombos, ou outras insurgências, os planos de ataque. Aqui
também podemos ressaltar a intervenção direta das mulheres negras na estruturação
dos Quilombos, como, por exemplo, Dandara dos Palmares, Tereza de Benguela,
Aqualtune entre outras.4
Como colocado pela historiadora Beatriz Nascimento (2006), os Quilombos
podem ser considerados como as primeiras formas de mobilização do povo negro.
Há registro de agrupamentos desde 1559, tecendo um fio condutor de ancestralidade
entre os Continentes Africano e Americano. Porém, a autora não aborda a concepção
de quilombo apenas como uma organização do passado. Ela o ressignifica como um
corpo político e ideológico permanente, que como tal significa um espaço ocupado
por negros e negras combatentes, uma união de cultura e costumes, um aquilombar,
que persiste na atualizada e nas estratégias de resistência da população negra.
Esse processo de aquilombar reflete um passado, presente e um futuro,
proporcionando o saber e o acolhimento ancestral para as próximas ações do
Movimento Negro. Nesta pesquisa, o aquilombar vem como abre-alas para o debate
da Lei nº 10.699/03 e as experiencia das mulheres negras.
Para podermos analisar de forma concisa a trajetória histórica dessa lei,
focaremos, como supracitado, em duas organizações, o Movimento Negro Unificado
e a Rede de Mulheres Negras. Todavia, é importante frisarmos que de forma alguma
estamos negando a relevância de outras organizações do Movimento Negro, como a
Frente Negra Brasileira (1931), o Teatro Experimental do Negro, Confrarias
Religiosas Negras, agrupamentos de religião de matriz africana, entre outros, que
foram determinantes na reivindicação para uma educação diversa e inclusiva.
4Dandara dos Palmares: uma das líderes do Quilombo dos Palmares, localizado em Pernambuco.
Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?p=33387. Acesso em: 22 jun. 2021.
Tereza de Benguela liderou, entre 1750 e 1770, após a morte de seu companheiro, José Piolho, o
Quilombo do Quariterê, situado entre o rio Guaporé e a atual cidade de Cuiabá, capital de Mato Grosso.
O lugar abrigava mais de 100 pessoas. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?p=46450 . Acesso
em: 22 jun. 2021.
Aqualtune: matriarca no Quilombo dos Palmares e avó de Zumbi dos Palmares. Disponível em:
http://www.palmares.gov.br/?p=39575. Acesso em: 22 jun. 2021.
Acotirene: considerada matriarca no Quilombo dos Palmares e conselheira dos primeiros negros
refugiados na Cerca Real dos Macacos. Disponível em: https://www.geledes.org.br/17-mulheresnegras-brasileiras-quelutaram-contra-escravidao/. Acesso em: 22 jun. 2021.

A LUTA DO MOVIMENTO NEGRO PARA A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI

O Movimento Negro Unificado (MNU) foi fundado em 18 de junho de 1978,
em plena ditadura militar, com seus ideias vanguardistas voltados para pautas da
população negra e para o acesso a direitos básicos como expressões culturais e
educacionais. Logo em seus documentos oficiais de criação, já havia uma
preocupação com a inserção da população negra nos ambientes educacionais tanto
fundamentais quanto superiores e a propostas de implementação de uma história
escrita e vivenciada pelo povo preto nas diretrizes educacionais, como podemos ver
neste pequeno trecho da carta de princípios:
Nós, membros da população negra brasileira – entendendo como negro todo
aquele que possui na cor da pele, no rosto ou nos cabelos, sinais
característicos dessa raça –, reunidos em Assembleia Nacional, convencidos
da existência de discriminação racial, marginalização racial, [...] mito da
democracia racial, resolvemos juntar nossas forças e lutar pela defesa do
povo negro em todos os aspectos [...]; por maiores oportunidades de
emprego; melhor assistência à saúde, à educação, à habitação; pela
reavaliação do papel do negro na história do Brasil; valorização da cultura
negra [...]; extinção de todas as formas de perseguição [...], e considerando
enfim que nossa luta de libertação deve ser somente dirigida por nós,
queremos uma nova sociedade onde todos realmente participem, [...] nos
solidarizamos com toda e qualquer luta reivindicativa dos setores populares
da sociedade brasileira [...] e com a luta internacional contra o racismo. Por
uma autêntica democracia racial! Pela libertação do povo negro! (MNU, 1988,
p. 19).
Pela sua abrangência nacional, o Movimento Negro Unificado estabeleceu
raízes por todo o Brasil, chegando ao Sul do país, mais especificamente ao Estado
do Paraná, em 1996, na cidade de Curitiba, tendo como ponto focal de discussão a
educação e como a população negra é retrata no Sul do país, tensionando o processo
de branqueamento.
Neste sentido, podemos perceber nos eventos realizados pelas duas
organizações, tanto pelo Movimento Negro Unificado quanto pela Rede de Mulheres
Negras, a preocupação da presença do debate sobre a desmistificação do ideal de
branquitude relacionado ao Sul do país, mas especificamente no Paraná. Ambos
trazem em suas falas as estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), que mostram que 28,5% da população se autodeclaram pretos ou pardos no
Paraná. Esses dados apresentam características bastante peculiares com relação a
composição étnico-racial do Estado e desmistificam a imagem relacionada somente
à imigração europeia, inúmeras vezes apresentada como característica do Sul do
Brasil.
Para elucidar esse processo de estruturação do Movimento Negro Unificado
no Paraná, utilizaremos algumas falas da professora Almira Maria Maciel, formada
em pedagogia, filiada desde 1996, e que tem como principal frente de trabalho a luta
pela educação. Em suas falas, ela afirma a trajetória histórica do Movimento Negro
pela educação por meio de ações nas ruas. Podemos tomar como exemplo essa:
[...] Anterior à promulgação da lei o MNU promoveu inúmeras ações em
defesa da educação das relações étnico-raciais e da História da África e dos
negros e negras no Brasil, em África e na Diáspora. Enquanto organização
do movimento negro e também em conjunto com outras entidades
apresentou denúncias, elaborou pesquisas, validou cientificamente as
conclusões e propôs debates e encaminhamentos a exemplo de várias
campanhas junto à sociedade no combate ao racismo e na negação da
democracia racial. MACIEL, Almira Maria. Entrevista I. [2018].
Entrevistadora: Janaina Santana. Foz do Iguaçu - PR, 2018.
Outro ponto a se destacar foi a participação da professora na setorial do
Paraná na “Marcha Nacional Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e
a vida”, que aconteceu nos dias 17, 18, 19 e 20 de novembro de 1995, em Brasília.
No último dia da marcha, foi entregue para o então presidente da República, Fernando
Henrique Cardoso, o “Programa para Superação do Racismo e da Desigualdade
Étnico-Racial”, contendo as demandas de diversas organizações da sociedade civil
ligadas ao Movimento Negro.
A Marcha mobilizou o Movimento Negro em todo o território nacional.
Entretanto, essa mobilização acontecia muito antes da marcha, com a elaboração do
documento e o levantamento de dados das condições reais de negros e negras, como
o nível de alfabetização, mortalidade infantil, empregabilidade, porcentagem no
ensino superior e casos de racismo no Brasil. Fica evidente, nessa fala da professora
Almira, esse esforço para a articulação de diferentes setores para a elaboração de
políticas públicas voltadas para o combate ao racismo:
O movimento negro nacional, empenhado na conquista da igualdade racial,
envidou todos os esforços na implementação da lei através da sua própria
organização e na articulação com os diferentes setores da sociedade,
divulgando-a e apresentando propostas de formação, desconstruindo
equívocos históricos, apresentando dados estatísticos da nossa realidade,
elaborando material didático-pedagógico, literário e paradidático,
ministrando cursos e palestras. MACIEL, Almira Maria. Entrevista I. [2018].
Entrevistadora: Janaina Santana. Foz do Iguaçu - PR, 2018.
A educadora relatou a importância que o Movimento Negro teve para reunir
as principais demandas no exercício de implementações de políticas públicas que
realmente tivessem como base a realidade vivenciada pela população negra.
Por meio dessa mobilização, foi possível a criação de um plano de ações
afirmativas que tinha como base operacional a Secretaria de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial (SEPPIR), implementada em 21 de março de 2003.
Posteriormente, como uma maneira de regulamentar a ações afirmativas previstas na
Constituição, foi promulgado o Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, que contém
todas as leis voltadas à população negra, como as Leis nº 10.639/03, nº 11.645/08 e
nº 12.711 de 2012 (Lei de Cotas).
Neste sentido, abordar o percurso histórico por meio das vivencias da
professora Almira Maria Maciel elucida o quanto o corpo político das mulheres negras
se fez e se faz presente na elaboração de demandas relacionadas ao direito básico,
como o acesso à educação. Percebe-se a presença dessas mulheres em todas as
instâncias de luta, no processo de mobilização, levantamento de dados e de
organização das regionais, como por exemplo a educadora Heliana Hemeterio dos
Santos (RMN), Alaerte Leandro Martins (RMN), Angela Martins (RMN), Cleci Martins
(RMN), Sueli Crespa (MNU), para a marcha e promulgação de documentos que
originam as leis de ações afirmativas.
Focando o olhar para a Lei nº 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade
do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todas as etapas
educacionais públicas e privadas, percebemos o gestionar dessas mulheres também
na base da lei, em seu parecer, feito pelas pesquisadoras Petronilha Beatriz
Gonçalves e Silva, Francisca Novantino Pinto de Ângelo, Marília Ancona Lopez e pelo
pesquisador Carlos Roberto Jamil Cury. Esse documento constitui as normativas
básicas de como a lei deve ser aplicada nos ambientes educacionais e quais as
justificativas históricas para sua formulação perante a sociedade. As pesquisadoras,
em todo o decorrer do texto, alertam a relevância do Movimento Negro para se fazer
valer a lei nas escolas, pois é por meio desse movimento que a realidade é repensada
e há a desnaturalização de práticas racistas e preconceituosas. Podemos isso
perceber nesse trecho:
A participação de grupos do Movimento Negro, e de grupos culturais negros,
bem como da comunidade em que se insere a escola, sob a coordenação
dos professores, na elaboração de projetos político-pedagógicos que
contemplem a diversidade étnico racial (GONÇALVES .P,2004.p 11)
Portanto, o parecer possibilita uma direção para reconsiderar como se é feito
o ato de educar, não somente em termo de didáticas do educador, mas de todos os
profissionais educadores e em todas as áreas de estudo, reconhecendo e valorizando
outros saberes e perspectivas.
Entretanto, mesmo depois de mais de dez anos da Lei nº 10.639/03, ainda se
encontra dificuldades de seu cumprimento nos ambientes educacionais. E essa
situação se agrava quando os órgãos fiscalizadores são sucateados, como no caso
da SEPPIR. Cabe relembrar que essa secretaria foi extinta em 2019. Outro ponto a
destacar seria a precarização das chamadas Equipes Multidisciplinares. Essas
desenvolvem o importante trabalho de organizar, juntamente com os Núcleos
Regionais de Educação e as direções dos colégios estaduais do Estado do Paraná,
as práticas docentes que debatam assuntos transversais como as relações étnicoraciais e de gênero e as diversas formas de violência.
Em consequência das debilidades para a implementação da Lei nº 10.639
por parte dos órgãos responsáveis, o Movimento Negro viu-se pressionado a
convocar outra Marcha Nacional. Entretanto, ressaltamos que outras mobilizações
foram organizadas por diversas entidades sociais negras em escalas regionais e
estaduais no decorrer dos anos. Porém, um chamado nacional em Brasília, como o
que aconteceu em 1995, se deu no ano 2015. Mas diferentemente da Marcha para
Zumbi, essa organização foi explicitamente protagonizada por mulheres. O
Movimento “Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver” foi
realizado no dia 18 de novembro e teve como principais demandas a adoção de
políticas mais efetivas contra o feminicídio de mulheres negras, a implantação de
políticas educacionais e o direito ao trabalho e à terra, entre outras.
A Marcha contou com a presença de diversas instituições e entidades de
grupos sociais ligados ao movimento de mulheres negras, entre eles partidos
políticos, organizações LGBTQI+, religiões de matriz africana e organizações
religiosas cristãs, quilombolas, Movimento dos Sem Terra e de Sem Tetos. Outro
ponto que pudemos analisar foi a diferença de idade na marcha. Marcharam mulheres
que participaram do movimento na década 1960 até meninas menores de idade. Viase uma formação de espelho, onde a luta das mais velhas refletia e inspirava as mais
novas. Nos, olhares, a certeza de que a luta tinha que continuar e os ancestrais
concediam Asés e Améns.
O protagonismo das mulheres negras convocando uma Marcha Nacional com
mais de 10 mil pessoas possibilitou um aprofundamento das análises feitas sobre o
Movimento Negro, e como essas mulheres negras em movimento (CARNEIRO,2003)
deslocam as estruturas sociais, inflamando o debate sobre o não cumprimentos de
políticas públicas, incitando a participação maciça de toda a camada da população
para as ruas. Como essas mulheres em movimento fazem de suas vivências e
experiências ferramentas para a implementação das ações afirmativas e escurecem
memórias históricas com sua presença, se fazem presentes nas lacunas de espaços
negados, com seus corpos políticos reavivando trajetórias e fatos esquecidos pelo
embranquecimento colonial.
CORPO POLÍTICO E A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 10.639/03

Trazendo para a realidade paranaense, a setorial regional para a mobilização
da Marcha das Mulheres Negras na região foi organizada não somente pelo
Movimento Negro Unificado, mas também pela Rede de Mulheres Negras do Paraná,
que, com o auxílio de algumas universidades, como a UNILA e a UFPR, conseguiram
agrupar 40 mulheres, sendo disponibilizado um ônibus e algumas passagens áreas.
Consideramos de total importância trazer a fala da educadora Cleci Martins, que, junto
com outras afiliadas da Rede, realizou a estratégia de mobilização do Estado Paraná
para a Marcha. Cleci é professora da rede municipal da cidade de Araucária e também
lecionou por sete anos para o Estado, pelo regime de contratação. Sócia-fundadora
do Grupo Afrovida,
5 de Cascavel, atualmente está na coordenação da Rede de
Mulheres Negras do Paraná.
A corporalidade dessas mulheres paranaenses no Movimento Negro
desmistifica todo um passado sexista. O corpo da mulher negra é político, como
afirmado pela professora Cleci:
Na verdade, eu sempre falo que a gente é um corpo negro em movimento.
Nós somos mulheres negras em movimento. Então, nosso corpo chega antes
que a gente fale alguma coisa. Então, se você chega num espaço, você é
uma mulher negra, um corpo negro, que está falando e eu acho que o nosso
corpo já denota um posicionamento político que a gente adota. Isso pra
alguns é muito bom, porque fortalece a identidade. No entanto, pra
branquitude, ainda causa espanto e uma ausência de querer nos reconhecercomo sujeitos ativos e que não somos subalternos e questionamos a forma
de mundo ocidental e branca que nos colocaram. MARTINS, Cleci.
Entrevista II. [2018]. Entrevistadora: Janaina Santana. Foz do Iguaçu - PR,
2018.

Este corpo político, ao se movimentar, repensa processos e incorpora
políticas públicas voltadas para a população negra, fortalecendo o debate em torno
da construção identitária nacional. Portanto, temos que entender as ações afirmativas
como um pacote de medidas para combater práticas racistas, compreendendo que
sua base precisa estar atrelada ao ambiente educacional. Esse espaço possibilita a
ampliação da discussão para toda a camada da sociedade, tendo em mente que o
acesso à educação é um direito básico de acordo com a Constituição Federal de
1988.
Outro ponto significativo é a presença dessas mulheres em movimento dentro
dos espaços educacionais, atrevendo-se a questionar com seu corpo político a
ausência da intelectualidade negra na construção epistemológica nos espaços de
poder. Trazendo para dentro da aula a representatividade que poderá refletir no
processo de aprendizagem dos educandos negros e não negros, como podemos
perceber na fala da professora Cleci:
Então, eu acho que o nosso corpo, ao adentrar principalmente no espaço da
educação, ele é um corpo político e já contribui de certa forma pra formação
de identidade das nossas crianças. Porque quando você vê o olhar da
menina negra quando ela chega no primeiro dia de aula e abre a porta e vê
que a professora é como ela, o olho dela já fala muita coisa. MARTINS, Cleci.
Entrevista II. [2018]. Entrevistador: Janaina Santana. Foz do Iguaçu - PR,
2018.
A presença da professora negra ressignifica o espaço que é a sala de aula,
pois com sua corporalidade a mulher proporciona a insurgência de novos mundos e
possibilidades: o lugar que antes era negado, passado, agora é ocupado, presente,
e para esses educandos (principalmente negros), significa projeções para o futuro.
Assim, a Lei nº 10.639/03, sendo uma política pública de ação afirmativa que
projeta práticas voltada para a educação, promove o desenvolvimento de novas
abordagens metodológicas inspiradas em conhecimentos ancestrais, como colocado
pela professora Almira:
A Lei 10.639/03 surge neste contexto e propõe alternativas de re-educação
com orientações, princípios e determinações, bem como sugestões de
criação de novas pedagogias de combate ao racismo. Conhecer a História
dos processos civilizatórios dos povos africanos em África e na diáspora
permite outra visão no que tange a essa população, parcela significativa e
maioria do povo brasileiro. Somos os e as responsáveis pela produção de
riquezas materiais e socioculturais neste país, tendo sido historicamente
alijados de acessá-las. Portanto, sem nenhuma dúvida reafirmamos a
importância e o significado de sua implementação, ressaltando que combater
o racismo é responsabilidade de todos, negros/as e não negros/as, na
perspectiva de uma sociedade humana e justa.
MACIEL, Almira Maria. Entrevista I. [2018]. Entrevistadora: Janaina Santana.
Foz do Iguaçu - PR, 2018.
A implementação da Lei nº 10.639/03, junto à presença do corpo político da
mulher negra, viabiliza o escurecimento de nossa história, pois problematiza a
negação da racionalidade do povo negro produzida pelo período colonizador e de
como esse processo é mais acentuado com mulheres negras, entendendo o peso
histórico que recai sobre elas, o da escravização e o do sexismo.
Deste modo, o movimento negro ressignifica em sua luta espaços de poderes
e focaliza a ideia de raça numa perspectiva política, reivindicando direitos, como o
caso das ações afirmativas, reafirmando um aquilombamento (NASCIMENTO, 2006)
para a fortificação por meio da ancestralidade, e projetando o que podemos esperar
para o futuro, mas não esquecendo que somos frutos de luta do passado.
Quando esse corpo político em movimento se faz presente na sala de aula,
acontece um aquilombamento. Essas professoras, com suas vivências expressas na
corporalidade e intelectualidade, entrelaçam práticas do movimento negro com outros
saberes, fazendo exatamente o que o parecer da lei estipula.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando-se em consideração esses aspectos, ao trazer as narrativas das
educadoras participantes de Movimentos Sociais Negros do Paraná, esta pesquisa
oportunizou a discussão em relação ao escurecimento de memórias e histórias do
Estado, percebendo a presença de organizações do Movimento Negro e como esse
se articula com outras mobilização nacionais.
Os corpos políticos dessas mulheres em movimento reafirmam a importância
da continuidade na resistência para a implementação das Ações Afirmativas em todos
os âmbitos, mas principalmente os voltados para a educação. Problematizando a
estrutura social racista, sexista e classista, essas mulheres repensam os entraves
impostos.
Por tudo isso, essa pesquisa vem na perspectiva de possibilitar o realce de
ações de “escurecimento” de memórias, mas também, a exaltação da identidade
negra no Estado do Paraná, forma pela qual a população negra se apodera das
relações históricas do Estado e indaga a respeito do passado ancestral, para que
assim possa ser entendido mais sobre as futuras relações.
Desse modo, trazer várias formas de discutir os diversos mundos para dentro
da sala de aula cria a possibilidade de uma maior empatia perante os educandos e
educadores, ouvindo e conhecendo as trajetórias dos próprios componentes, levando
em consideração o espaço educacional presente no Paraná e a diversidade de
indígenas, negros, ciganos, comunidades do Oriente Médio, povos tradicionais, entre
outros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História
e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da
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estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena”. Brasília, DF: Presidência da República [2008]. Disponível em:
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