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Quesito raça/cor OBRIGATÓRIO para promoção da Saúde Pública brasileira

Quesito raça/cor OBRIGATÓRIO para promoção da Saúde Pública brasileira

Por Michely Ribeiro da Silva

“Pouco a pouco a lagarta consegue devorar a folha da árvore.”
 (Provérbio Africano)

 

A “raça/cor ” faz parte das características das pessoas assim como sexo e idade e desde os anos 90, praticamente todos os levantamentos oficiais coletam este dado. A publicação da Portaria nº 344 em 1º de fevereiro de 2017, reitera a necessidade do quesito raça/cor para efetivar o Sistema Único de Saúde – SUS.

Desde a realização do primeiro Censo Demográfico no Brasil em 1872, a classificação por raças é vigente. Naquele momento ela estava estruturada em quatro opções de resposta: branco, preto, pardo e caboclo, esta última dirigida a contabilizar a população indígena no país. Já a categoria Pardo designava os mestiços; e, posteriormente, com a imigração asiática, foi criada a categoria amarela que designava os orientais/asiáticos.

Em 1890, quando aconteceu o 2º Censo Demográfico, foi utilizado o termo mestiço que veio substituir a categoria pardo, enquanto as outras três categorias continuaram a ser utilizadas. Dessa maneira é nítida a utilização de dois critérios simultâneos na classificação da população no mesmo quesito: um que aponta para o registro da “cor” da pessoa entrevistada, utilizando as categorias de branco e preto, e outro que falam sobre a ascendência ou origem racial, manifestada através da utilização do termo mestiço para os produtos das uniões de pretos e brancos, e de caboclo para classificar os indígenas e seus descendentes. Esse foi o início da coleta do quesito que atualmente é chamado de raça/cor, e que desde 1991, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas - IBGE utiliza nas pesquisas sobre a população brasileira cinco categorias: branca, preta, parda, amarela e indígena, sendo que para designar a população negra brasileira utiliza-se a somatória entre as categorias PRETA + PARDA = POPULAÇÃO NEGRA. O quesito raça/cor voltou aos formulários nacionais em 1996, pois havia sido retirado dos formulários públicos em 1970, em meio à ditadura militar.

É preciso evidenciar que o método adequado para a coleta dessa informação é a autodeclaração, isto é, a pessoa é quem indica a sua “raça/cor” entre as cinco categorias possíveis. Há situações em que é preciso fazer uso da hetero-classificação, isto é, outra pessoa, preferencialmente familiares ou responsáveis, define a raça/cor de outra pessoa, mas esta conduta deverá ser utilizada somente em situações específicas, tais como: recém- nascidos, óbito ou se a pessoa estiver impossibilitada de fazer sua autodeclaração.

 

Quesito Raça/Cor e as Relações Raciais no Brasil


O início de todo diálogo para compreender as relações raciais no Brasil, assim como a situação na qual diferentes populações negras se encontram, devem estar amparadas no contexto histórico que amplia olhares para o entendimento dos indicadores que apresentam, por exemplo a juventude negra como principal vítima da violência e mortalidade.

Nesse sentido, é preciso lembrar a história do Brasil significando recordar que a população brasileira foi constituída por indígenas, europeus, assim como de negras e negros africanos. Cabe, no entanto, evidenciar que tal constituição populacional forjou-se a genocídio de diversos povos indígenas devido a colonização europeia, e escravização de negros trazidos forçados do continente africano. Tal história estrutura a instalação de privilégios, mediadas pelo estado colonial, apresentando desde aquele momento marcas políticas e culturais que orientam a dinâmica social das relações raciais no Brasil.

Essa historicidade confere-nos entendimento de que a sociedade brasileira, composta por brancos, negros e indígenas apresenta diferentes espaços sociais para esses grupos populacionais, tendo reflexo direto nos indicadores sociais, que apresentam negros e indí- genas com os piores indicadores de escolaridade, sendo que se encontram inseridos nos piores postos de trabalho e têm menos acesso a bens e serviços sociais. Sendo assim, as diferenças entre tais populações configuram-se como desigualdades que levam à miséria material, ao isolamento espacial e social, e a restrições à participação política. A este processo denominado racismo, acaba está enraizado na cultura, nas relações sociais e nos comportamentos da sociedade brasileira, e tem seus reflexos também no Sistema de Saúde. Nesse sentido, podemos afirmar que o racismo é o principal determinante social em saúde para população negra, já que incide negativamente sobre todos esses fatores que compõem o conceito de saúde.

O SUS emerge a partir de uma abordagem de saúde integral que compreende que a saúde não é apenas a ausência de doenças, mas também a promoção da qualidade de vida, da prevenção de doenças e do reconhecimento da influência de outros fatores como alimentação, moradia, saneamento básico, educação, transporte público, assim como pertencimento racial têm impacto significativo na vida das pessoas, e como essas experimentam o sistema de saúde.

Além disso o SUS tem um componente fundamental para o acesso universal a saúde, ele é um sistema completamente gratuito e que reconhece a saúde por seu conceito mais abrangente pautado na qualidade de vida, o que abre espaço para garantia de muito mais que apenas o acesso a um atendimento médico específico ou um medicamento, mas ele possibilita o acesso a uma gama de cuidados que garantem a atenção a saúde integral.

A saúde pública brasileira ancora-se na definição das políticas de saúde baseada em evidências científicas, ou seja, através dos dados coletados e estudados, busca-se o uso sistemático de evidências de pesquisa no processo de elaboração e definição de políticas de saúde, por meio de parcerias entre gestores, representantes do controle social e pesquisadores. Com foco para difundir o uso compartilhado de conhecimentos científicos e sua aplicação, de modo a subsidiar a tomada de decisão por parte de gestores públicos, visando melhorar a saúde de todas as populações brasileiras.

Então qual seria a importância da obrigatoriedade da coleta do quesito raça/cor?
Se essas evidências científicas são tidas com base nos dados produzidos pelos sistemas de informação em saúde, que são criados e modernizados constantemente para subsidiar a formulação de políticas públicas, bem como definir prioridade de ação da gestão, o não preenchimento do quesito raça/cor, faz com que não seja possível identificar racialmente, quem são por exemplo, as pessoas que mais morrem estratificadas racialmente. Só através dos dados do SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade) foi possível evidenciar o que a muito as populações negras dizem: jovens negros têm 130% mais chance de morrer do que jovens não negros. Isso porque nos dados de mortalidade o quesito raça/cor foi preenchido. Assim que foi possível bradar ainda mais que são as mulheres negras que engrossam o caldo da mortalidade materna no país, ou ainda que a violência contra as mulheres aumentou em 54% nos casos de homicídios para mulheres negras, enquanto no mesmo período o índice de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, conforme os dados do Mapa da Violência 2015.

A utilização de evidências científicas é fundamental para assegurar que a alocação de recursos públicos seja feita de maneira a garantir a efetividade de políticas e programas, de modo garantir saúde para as populações brasileiras. O fato é que nem todas as pessoas compreendem a definição das políticas públicas da mesma maneira. E por essa razão muitos profissionais de saúde desconsideram o quesito raça/cor negligenciando a produção de dados a serem utilizados para basear a tomada de decisão nos direcionamentos da política de saúde do país.

Existe ainda a diferenciação da maneira com a qual os dados são coletados: em alguns lugares coletam negros ao invés de pretos e pardos, em outros existe o campo “ignorado”, no qual não há preenchimento do campo. Nesse sentido a Portaria nº 344 de 01 de fevereiro de 2017 vem como retorno das reivindicações do movimento negro, assim como das redes negras em saúde, vem abranger a obrigatoriedade do preenchimento do quesito raça/cor, assim como a padronização na forma de coletar o mesmo. No entanto não define a necessidade de retirada de campo “ignorado” dos sistemas de informação. Do mesmo modo que não se pode ignorar o fato de alguém ser mulher/homem, ou criança/jovem/adulto/idoso, orientação sexual, ou ainda residir em espaço urbano/rural/comunidade tradicional, não se pode ignorar o pertencimento racial de cada indivíduo.

A Portaria nº 344/2017 é uma conquista do movimento negro, mas sobretudo das populações brasileiras, e da saúde pública brasileira. É direito de cada cidadã e cidadão acessar as informações

É importante tornar essa coleta do quesito raça/cor, aos moldes do IBGE, obrigatória compreendendo a autodeclaração como respeito ao pertencimento racial de cada pessoa. De mesmo modo faz-se importante a divulgação dos dados desagregados por raça/cor, de modo a oportunizar o direito à informação em saúde, e assim podermos ter políticas públicas mais eficazes no atendimento das populações brasileiras, sobretudo para a população negra que a muitos anos tem sido negligenciada.

É preciso especificar que o racismo é fruto da relação entre as pessoas, e, portanto, apreendido ao longo do processo de construção histórica, pelo delineamento de categorias cognitivas e afetivas de pertencimento. E para a superação do racismo na saúde, é preciso primar pela capacitação constante dos profissionais de saúde para a promoção da igualdade racial em saúde, e instrumentalizando gestores públicos para a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.

Seguimos pela promoção de uma Vida Longa, com SAÚDE e sem Racismo!

 

Referências:

LOPES, Fernanda; WERNECK, Jurema. Saúde da população negra: da conceituação às políticas públicas de direitos. In: Mulheres Negras: um olhar sobre as lutas socais e as políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: CRIOLA. 2009.

 

Histórico da investigação sobre cor ou raça no IBGE

(http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/caracteristicas_raciais/notas_tecnicas.p df)

Perguntar não ofende. Qual a sua cor ou raça/etnia? Responder ajuda a prevenir (http://www.saude.sp.gov.br/resources/ses/perfil/profissional-da-saude/grupo-tecnico-de- acoes-estrategicas-gtae/saude-da-populacao-negra/livros-e-revistas/livro_quesito_cor.pdf)